Não é mentira dizer que, por muitos anos (e ainda hoje), mulheres foram ocuparam as cozinhas familiares e dominaram essa arte até chegar a cozinhas profissionais e restaurantes renomados. O sucesso para muitas receitas gastronômicas que conquistam diversos paladares, por vezes, conta com um ingrediente especial: a memória afetiva.
Neste sábado, quando se comemora o Dia Internacional da Mulher, o Metrópolesconversou com grandes cozinheiras para saber quais foram as mulheres da sua vida que as inspiraram a chegar onde estão.
Cozinha como lugar de afeto
Helena Rosa, nascida do Quilombo Kalunga na Chapada dos Veadeiros, conta que suas primeiras memórias na cozinha são ajudando a mãe e a avó. “Minha avó fazia um biscoitinho chamado ‘mentira’ que eu nunca esqueci. Entendi que a cozinha é lugar de afeto.”
“Alimentar e nutrir alguém é, em geral, uma tarefa bastante feminina. Na minha casa, não foi diferente. Enquanto os homens iam tirar o leite, plantar e colher, as mulheres estavam preparando a próxima refeição da família. Ali estavam as gerações: minha avó, minha mãe, eu e minhas irmãs”, comenta.

A profissional é idealizadora do Crioula Café, a primeira cafeteria inspirada na cultura quilombola. O impacto das mulheres na sua cozinha foi imenso, segundo ela.
“O cardápio da cafeteria foi todo construído a partir das memórias e lembranças do tempo em que eu era criança. Fiz questão de preservar também os temperos, da maneira como eu lembrava. Fiz pouquíssimas adaptações”, salienta.
Cozinhar como brincadeira
A chef e professora Adriana Alves começou a atuar na gastronomia ainda criança, quando brincava de casinha. “Minha tia sempre me estimulou muito. Cozinhei de verdade pela primeira vez aos 7 anos, fiz uma torta de frango com abacaxi. Minha tia e seu esposo provaram e disseram estar uma delícia. Quando provei, achei horrível, mas agradeço muito ao gesto de meus tios de me elogiarem e comerem fingindo que estava bom”, relembra.
Além dos tios a incentivarem, a profissional destaca que uma das suas grandes memórias afetivas era da sua avó cozinhando. Mesmo assim, sua maior referência na cozinha foi a mãe, que marcou sua trajetória na gastronomia, embora tenha morrido quando ela ainda era jovem.

“Lembro do cheiro de bolinho de chuva e dela assando bolo na boca do fogão, pois não tínhamos forno à época”, conta Adriana. “Dos estímulos recebidos aos cheiros e gostos guardados na memória, a cozinha, para mim, é antes de tudo afetiva. É sobre criar momentos de reunião de amigos e família, de ter prazer junto à mesa, boas risadas e conversas.”
Adriana reforça que a cozinha na sua casa era um ambiente feminino.
“Elas me mostraram a força e a criatividade de se fazer muito com poucos ingredientes à disposição, sempre com carinho. Fico satisfeita em ver o caminho que traçamos na atualidade com homens e mulheres pertencendo à cozinha, e as mulheres podendo ocupar muitos outros espaços fora do ambiente doméstico”, acrescenta a especialista.
Autoconhecimento como ingrediente
Catarina de Freire, por sua vez, conta que começou a cozinhar quando foi morar sozinha, aos 18 anos. “Nessa mesma época, comecei a vender bolos no pote na faculdade para complementar minha renda. Acho que a confeitaria foi minha porta de entrada para a gastronomia.”
O autoconhecimento e a autodescoberta foram a chave para Catarina entender sua própria gastronomia.
“Engraçado como a minha fonte de referências mudou a partir do momento em que me reconheci como uma mulher preta”, explica.

“Logo no início da graduação em gastronomia, eu tinha uma avidez muito grande por consumir os repertórios dos grandes nomes da gastronomia — majoritariamente, pessoas brancas. Quando tomei posse da minha consciência racial, minha base de referência virou-se para ancestralidade, me trazendo ao espaço que ocupo agora”, destaca a profissional.
Atualmente, Catarina é uma das sócias do Santú, de comida brasileira. “O Santú carrega muito dessa busca pela valorização e reconhecimento da cultura alimentar brasileira e, com isso, a clareza do espaço ocupado por mulheres pretas nas cozinhas desde os primórdios coloniais.”
Comida afetiva
Adriana Martins, professora e chef de cozinha, começou a cozinhar no “susto”. “Era muito pequena”, relembra.
Apesar de inesperado, Adriana não teve medo e seguiu o caminho da gastronomia, incentivada pela mãe. “Me lembro da minha prima fazer um carreteiro de vagens que minha avó plantava no quintal e ficar maravilhoso; e o meu ficar horrível”, brincou.
Outras grandes inspirações para a cozinheira foram as avós materna e paterna, profissionais de “mão cheia”. “Eu sou uma cozinheira que trabalha muito bem tanto com salgados, doces e pratos; acho que se não fosse por elas, seria uma cozinheira como tantas outras, mas gosto muito de trabalhar com cozinha afetiva.”

fonte: metrópoles